Nem tudo é simbólico: a potência das qualidades na publicidade e nas marcas

Por Redação

20/03/2024 15h48

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Ao caminharmos pelos corredores de um mercado, quando nos deparamos com uma embalagem em uma cor forte, imediatamente surge a ideia de intensidade. Seja um café em torra mais escura (portanto, mais amargo), um produto de limpeza concentrado ou um chocolate com maior porcentagem de cacau, temos uma qualidade daquela materialidade nos comunicando sobre um benefício daquele produto.

Sabemos que uma embalagem, produção audiovisual ou qualquer outra manifestação publicitária têm seus significados gerados por uma diversidade de elementos.

Há aqueles produzidos por suas cores e formas, aqueles das interações do contextos em que eles estão inseridos e aqueles simbólicos, relativos à cultura ou às normas sociais. Esses últimos estão extensamente presentes nas discussões internas das empresas e no cotidiano do consumidor, vistos como o posicionamento das marcas, ou como a mensagem que ela busca passar. Nesse sentido, quase como um fetiche, indivíduos buscam enxergar um significado profundo por trás de tudo com o que cruza seus caminhos.


Ao olharmos para o que popularmente ficou conhecido como Arte Conceitual, existe a ideia de que o conceito (ideia, mensagem etc.) se sobrepõe ao formato ou à aparência. Com prenúncios com Duchamp com seus ready-mades na primeira metade do século XX à popularização do movimento a partir da década de 1960, são peças, quadros, vídeos etc. que buscam expressar algo para além daquilo contido em suas formas, buscando uma generalização que transborda do objeto.


A influência desse tipo de arte pode ser observada no cotidiano. Ao vagar por museus ou galerias de arte, não é incomum nos depararmos com indagações como “o que essa obra significa?” ou “qual a mensagem que o/a artista quis passar?”. Ora, muitas vezes a resposta pode ser “nada”, ou ainda “pouco importa”. Isso porque nem toda obra de arte é representacional, isto é, nem toda obra busca uma generalização, como se sua produção fosse feita a partir de um conceito ou desdobrada de uma grande ideia.


A arte abstrata que se popularizou no século passado é um exemplo disso. Basta um olhar para qualquer das Composições do artista plástico Wassily Kandinsky (1866-1944) que encontramos uma profusão de qualidades que são capazes de despertar em nós uma variedade de sentimentos: os degradês para o branco que comunicam suavização, as linhas retas com seus cortes bruscos e racionais, o excesso de elementos que provoca euforia mas também desassossego, as formas paralelas que criam harmonias e satisfação ao olhar…


Mas as qualidades são potentes não apenas na arte abstrata. Retornando alguns séculos, o Barroco é outro movimento que muito trabalhou com essas perspectivas. Ainda que sendo representacional, com suas recorrentes narrativas religiosas, há uma importante atenção às formas, às cores e à luminosidade, resultando em sua dramaticidade e em seu potencial de gerar efeitos sensoriais e emocionais.


Na semiótica existe uma categoria específica que trata desse tipo de efeito de sentido. É o caso quando falamos das qualidades. Trata-se de nossa primeira forma de apreensão das coisas que compõem o mundo, do momento em estamos dispostos para a percepção das cores, formas, linhas, texturas… Tudo aquilo que tem natureza de aparência e que não foi ainda completamente interpretado por nossas mentes. É uma forma ainda aberta e imprecisa de compreender os fenômenos, mas altamente potente.


As qualidades excitam nossos sentidos e têm o potencial de nos remeter a outras coisas com as mesmas qualidades. É por isso que quando vemos um smartphone, por exemplo, por mais singulares que possam ser suas características, o reconhecemos como tal objeto, porque sua forma nos remete a uma diversidade de outros smartphones que já encontramos em nossas vidas. Ou ainda na construção de sentidos das cores que, para além de suas próprias características, possuem sugestões relacionadas a outras coisas daquela mesma cor.

É o caso do dourado, que é vibrante e alegre em sua composição, mas também capaz de sugerir sentidos de nobreza, riqueza e superioridade ao nos remeter ao ouro e às coroas de reis e rainhas, tangenciando uma noção de sofisticação tradicional.


Os bens de consumo e as comunicações publicitárias das marcas reforçam como é fundamental o olhar para as qualidades. Isso não significa que a ideia (conceito ou posicionamento, use-se a palavra que achar melhor) não seja importante. Pelo contrário, sem essa dimensão, fica impossível a construção de qualquer marca que busque contato prolongado com o consumidor e com a cultura. Mas devemos ter sempre em mente que as qualidades colaboram para a construção dessa ideia e podem ser um elemento decisivo para o sucesso ou não de determinado projeto.


Nubank, ao chegar ao mercado a partir de 2013, divulgou a frase “Diferente de tudo que você já viu”. Ainda que a diferença e a inovação fossem sentidos importantes para a marca (e ainda são), houve uma reiterada atenção à materialidade do cartão de crédito nas comunicações. Ou seja, o discurso verbal era pautado pelo novo, mas a forma do produto cartão de crédito era familiar e remetia a algo conhecido pela maioria dos consumidores brasileiros. Ninguém poderia saber ao certo o que aquela nova marca apresentava de diferente, mas sabia-se que tinha algo a ver com banco e com pagamento.


O que está em jogo não é discutir o quanto as dimensões verbal e simbólica são importantes, mas compreender que um uso inteligente de qualidades em comunicações e embalagens é capaz de construir outras camadas de sentido. Camadas essas que reiteram (ou complementam) a dimensão verbal e aproximam o “ser” do “parecer”, mas que também são capazes de fisgar o desejo do consumidor e de criar conexões que vão além do racional e do necessário, ao acionar capacidades de sentir e de criar associações muitas vezes em nível abaixo do consciente.


Para tomarmos um exemplo de temática recorrente no dia atuais, olhemos a relação de marcas com a natureza. É evidente que há componentes simbólicos nessa conexão, tanto naquilo que os diferentes tipos de natureza podem representar (como a feminilidade das flores), quanto nos símbolos culturalmente estabelecidos (uma pequena folha verde em uma embalagem para representar sustentabilidade). Mas a natureza tem uma exuberância e diversidade com diferentes potencialidades a serem exploradas em suas qualidades.


Uma marca que se conecta à natureza pode não buscar apenas naturalidade. O verde escuro de uma mata densa e fechada pode sugerir perigo e tensão, o desconhecido e o inexplorado. A textura gelatinosa do interior de folhas como aloe vera é capaz de criar associações com hidratação. As pétalas de uma dália sugerem perfeição pela simetria, mas também delicadeza e fragilidade. Um abacaxi, para além de sua coroa simbólica, pode ser áspero e agressivo nos gomos da casca e nos espinhos das folhas.


Tudo isso são exemplos de qualidades de elementos da natureza que podem ser exploradas em comunicações ou em embalagens. Se uma marca está sendo construída a partir da ideia de flores, qual flor deve ser escolhida? Para além de seu significado na cultura, quais as qualidades que formam a aparência dessa flor? Ela pode ser estilizada em seu desenho? Como? Tudo isso faz parte da relação entre qualidades e construção de marca.


Ou ainda pensemos em um produto sabor abacaxi. Como a fruta pode ser representada de forma a atenuar seus sentidos mais ásperos e agressivos? Ou essa força é um sentido que eu desejo que esteja presente? As qualidades escolhidas para representar os ingredientes e suas composições são capazes de acentuar benefícios e sentidos desejados e afastar as associações potencialmente negativas.


A dimensão verbal é importante? Sim, imprescindível. Mas as qualidades existem não apenas para que uma embalagem e comunicação sejam bonitas ou feias, agradáveis ou repulsivas, mas elas geram sentidos e comunicam benefícios. Essa é uma das grandes potencialidades de um atento olhar a essa dimensão. Em sua flexibilidade, qualidades são o território do possível e o primeiro nível de interpretação na mente dos consumidores.

Elas fazem com que as coisas pareçam ser o que são, que características de produtos e serviços sejam comunicadas antes de racionalizações, que atrações às marcas sejam construídas pela aproximação com o desejo individual e que os consumidores sejam fisgados pela pura qualidade de seus sentimentos.

Rafael Orlandini
Pesquisador da Casa Semio, mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP e especialista em Cultura Material & Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas pela ECA-USP.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.