Nas licitações regidas pela Lei nº 12.232/2010, quem avalia a proposta técnica não pode saber quem a escreveu. Essa é a regra e ponto final. Mas por que é assim? Como isso funciona? E o que a agência precisa saber para não tropeçar nessa etapa? É sobre essa temática que iremos tratar no artigo da Coluna Publique-se desse mês de setembro de 2025.
A proposta publicitária que esconde o autor
Imagine participar de uma concorrência em que você precisa apresentar toda a sua capacidade criativa, estratégica e técnica — mas sem poder dizer quem você é. Esse é o desafio da proposta apócrifa, um dos elementos mais singulares e exigentes da licitação de publicidade regida pela Lei nº 12.232/2010.
Nesse modelo, as agências interessadas elaboram uma proposta técnica completa — com diagnóstico, soluções de comunicação, estratégia criativa e plano de mídia simulado. Mas, ao entregar esse material – e aqui é o ponto central do tema -, devem retirar qualquer elemento que revele sua identidade.
Nada de logotipo, nome fantasia, número de CNPJ, menções a clientes do portfólio, estilo gráfico característico ou qualquer outra pista que possa, direta ou indiretamente, permitir à subcomissão técnica saber de quem é aquela proposta.
É o que a lei exige: o julgamento técnico precisa ser feito às cegas — ou melhor, com os olhos voltados apenas para o conteúdo. Trata-se de uma proteção essencial à imparcialidade do processo, especialmente considerando que quem faz essa análise é uma subcomissão composta por profissionais do próprio mercado de comunicação.
O raciocínio é simples: como o julgamento envolve critérios técnicos e criativos — e, portanto, não é puramente objetivo —, garantir o anonimato da proposta reduz o risco de favorecimento, viés inconsciente ou conflitos de interesse. Julga-se a ideia, e não quem a propôs.
Esse modelo é incomum na administração pública. Em outras áreas, como engenharia, advocacia ou tecnologia da informação, não há exigência semelhante: a proposta técnica normalmente é assinada e identificada, até como forma de dar credibilidade ao currículo da empresa.
Mas na publicidade, por força de lei, a lógica se inverte. O valor do plano de comunicação publicitária apresentado não está em quantos prêmios a agência já ganhou ou em quais clientes ela atende, mas sim na qualidade da solução apresentada para o desafio proposto pelo edital — e essa qualidade deve ser julgada de forma neutra, livre de qualquer influência pessoal ou institucional.
Na prática, o anonimato da proposta técnica exige das agências um esforço redobrado: é preciso convencer sem assinar, e mostrar consistência técnica e criativa sem recorrer à autoridade do nome ou à reputação construída no mercado. Um exercício que, além de técnico, é também ético e estratégico.
O que pode (e o que não pode) conter na proposta
Se a proposta técnica precisa ser apócrifa, a pergunta inevitável é: o que pode e o que não pode aparecer nesse material?
A resposta parece simples — “nada que identifique a agência” —, mas a prática mostra que essa exigência esbarra em armadilhas sutis. Em cada licitação, surgem dúvidas, discussões e até desclassificações por deslizes que poderiam ser evitados com mais atenção aos detalhes.
✅ O que normalmente pode (e deve) conter:
A proposta técnica deve conter tudo o que o edital exige, desde que seja apresentado de forma anônima. Entre os elementos mais comuns, estão:
- Diagnóstico de comunicação: análise da situação-problema proposta no edital;
- Estratégia de comunicação: definição de objetivos, públicos-alvo, abordagem criativa e conceitual;
- Plano de mídia simulado: escolha de meios e canais adequados ao desafio proposto;
- Peças simuladas: textos, roteiros, layouts ou storyboards fictícios;
- Justificativas técnicas: explicação das escolhas feitas pela agência ao longo da proposta.
Ou seja: a proposta deve ser completa, criativa e bem fundamentada — mas sem assinar embaixo.
❌ O que não pode, em hipótese alguma:
A proposta não pode conter qualquer elemento que permita, mesmo indiretamente, identificar a agência autora. E aqui o cuidado deve ser extremo. Entre os erros mais comuns que já causaram desclassificações, destacam-se:
- Inserção do logotipo ou nome da agência (às vezes, até no rodapé por descuido);
- Menção a clientes reais atendidos pela agência como forma de justificar escolhas;
- Uso de nomes de campanhas ou slogans já realizados no mercado privado;
- Estilo gráfico ou diagramação visual muito característicos, que revelem a “marca registrada” da agência ou que esteja em desconformidade com as regras do edital;
- Expressões internas ou jargões próprios da equipe criativa, que denunciem o autor;
- Arquivos digitais nomeados com o nome da agência (ex: “proposta_agênciaXYZ.pdf”) ou com outras características que possam vir a identificar a agência.
Mesmo sem intenção, esses elementos violam o princípio da proposta apócrifa e podem invalidar até mesmo a participação da agência no certame. Por isso, o processo de elaboração deve ser acompanhado de uma revisão criteriosa, com o olhar de alguém que não participou da criação e que possa identificar sinais involuntários de autoria.
Uma boa prática adotada por agências experientes é fazer uma “blindagem final” da proposta: retirar todos os metadados dos arquivos, revisar títulos, cabeçalhos, notas de rodapé, e simular a leitura da proposta “com olhos externos”, como faria um membro da subcomissão técnica.
A proposta apócrifa exige, portanto, não só criatividade, mas também disciplina e atenção técnica. Criar no anonimato é um exercício desafiador — e absolutamente essencial para manter a integridade do processo.
A tensão entre anonimato e identidade criativa
Criatividade é, por definição, expressão de identidade. Toda agência tem seu jeito de pensar, sua forma de criar, seu “dialeto publicitário”. E é justamente isso que costuma atrair clientes no mercado privado: o estilo, a assinatura estética, a forma como transforma um briefing em resultado.
Mas na licitação pública, essa identidade precisa ser apagada da superfície da proposta. O desafio da proposta apócrifa é exatamente esse: imprimir personalidade sem revelar a autoria.
Não é um exercício simples.
A agência precisa demonstrar capacidade estratégica, domínio técnico, sensibilidade de linguagem, criatividade de execução — mas tudo isso sem recorrer a cases antigos, sem citar campanhas marcantes, sem usar artifícios visuais que a tornem reconhecível.
É quase como se um artista tivesse que pintar um quadro brilhante, mas assiná-lo com tinta invisível.
Esse paradoxo gera uma tensão real. De um lado, está o desejo legítimo da agência de mostrar sua força criativa, com todos os recursos que sabe utilizar. De outro, está a necessidade de se proteger de uma eventual desclassificação, evitando qualquer sinal que comprometa o anonimato.
Em algumas propostas, vê-se o pêndulo ir longe demais para um dos lados. Há agências que, com medo de errar, entregam materiais excessivamente genéricos, apagados, pouco ousados — perdendo pontos preciosos na avaliação técnica. Outras, na ânsia de mostrar excelência, deixam escapar sinais claros de identidade e acabam eliminadas.
Encontrar o ponto de equilíbrio entre ousadia criativa e rigor formal é talvez o maior desafio dessa etapa. E ele exige maturidade da equipe, leitura atenta do edital, revisão crítica do material e, acima de tudo, compreensão da lógica do processo público.
A boa proposta apócrifa é aquela que fala alto, mas sem dizer o nome. Que convence pelo conteúdo, pela estratégia, pela clareza — e não pela assinatura.
Na licitação de publicidade, ganha quem entende que criatividade, que, quando bem feita, dispensa crachá.
O papel da subcomissão técnica nesse contexto
A exigência de anonimato na proposta técnica não existe por acaso. Ela está diretamente ligada à figura central do julgamento na licitação de publicidade: a subcomissão técnica.
Como já vimos em artigos anteriores, a subcomissão é composta por pelo menos três profissionais com notório saber ou experiência em comunicação. São pessoas que vêm do próprio mercado – público ou privado -, com vivência real em campanhas, planejamento, mídia e criação publicitária.
Essa composição foi pensada para assegurar um julgamento mais qualificado, feito por quem entende da linguagem e dos códigos do setor. Mas, ao mesmo tempo, traz consigo um risco inevitável: a possibilidade de vínculos prévios entre os avaliadores e as agências participantes — sejam vínculos profissionais, institucionais ou mesmo pessoais.
É aí que entra o papel fundamental da proposta apócrifa: funcionar como uma blindagem ética e processual, protegendo o julgamento de influências externas e garantindo que o foco esteja no mérito da proposta — e não na reputação de quem a elaborou.
Ao manter as identidades ocultas, o processo reduz drasticamente as chances de favorecimento (consciente ou inconsciente), constrangimento ético ou conflito de interesses. A subcomissão analisa ideias, e não carteiras de clientes. Avalia estratégias, não relações de networking.
Essa separação entre proposta e autor também fortalece a legitimidade do resultado, especialmente em processos muito disputados. É mais fácil aceitar a derrota quando se sabe que a proposta foi julgada às cegas, por especialistas independentes, e não por critérios subjetivos ou por relações de bastidor.
Por isso, o compromisso da subcomissão técnica não é apenas técnico, mas também ético. Seus membros devem manter sigilo, atuar com independência e evitar qualquer comportamento que possa comprometer a credibilidade do julgamento.
E quando há indícios de quebra de anonimato?
Se a subcomissão identificar qualquer traço que possa indicar quem é a autora da proposta, ela deve relatar imediatamente à comissão de licitação, que pode desclassificar a proposta com base em violação da regra da proposta apócrifa. A depender do caso, o processo pode até ser anulado.
O sistema, portanto, é construído em duas pontas que se sustentam mutuamente: de um lado, a agência que se esforça para criar sem assinar; do outro, a subcomissão que julga com imparcialidade, justamente porque não sabe quem assina.
Essa arquitetura é o que permite que o julgamento seja não apenas técnico, mas também legítimo, justo e transparente.
A proposta apócrifa como espelho da agência
Curiosamente, embora não possa trazer qualquer traço de identificação, a proposta técnica fala muito sobre a agência que a elaborou.
Mesmo sem assinatura, sem logotipo, sem menção a clientes ou portfólio, a proposta apócrifa acaba funcionando como um espelho do modo de pensar da agência: sua capacidade de análise, sua maturidade estratégica, sua clareza conceitual, sua fluência na linguagem da comunicação pública.
É ali, naquele documento anônimo, que se revelam aspectos profundos do trabalho da equipe — mais até do que em um portfólio tradicional.
- Como a agência lê o briefing? A proposta mostra se ela enxerga além do óbvio ou apenas reproduz clichês.
- Como organiza o raciocínio estratégico? Fica claro se a agência sabe transformar diagnóstico em diretriz criativa.
- Quais escolhas faz para resolver o problema? Dá para perceber se há consistência na solução ou apenas estética publicitária.
- Como articula ideia, conceito e execução? A proposta revela se a agência domina o processo completo de comunicação ou se apenas lança slogans de efeito.
Isso significa que, para além da competição, a proposta apócrifa pode ser também um exercício de autoconhecimento institucional. Ao elaborá-la, a agência é obrigada a sistematizar seu pensamento, justificar cada decisão criativa, explicar suas escolhas de linguagem e demonstrar como pensa — tudo isso com clareza, coesão e sem depender da própria fama.
Muitas vezes, o que a agência escreve ali diz mais sobre ela do que sua logomarca ou sua lista de clientes. Por isso, há quem diga que a proposta apócrifa é, na verdade, a mais autêntica peça de comunicação institucional que uma agência pode produzir — porque ela não se apoia em credenciais externas, mas apenas em conteúdo e técnica.
Vale lembrar ainda que, mesmo após a licitação, a proposta apócrifa pode servir como referência interna para a própria agência: um marco do seu padrão de entrega, uma peça de portfólio “desidentificada” que revela processos e métodos.
No fim das contas, o anonimato não anula a identidade. Ao contrário: ele obriga a agência a expressá-la de maneira ainda mais refinada.
Conclusão: técnica, ética e estratégia
A proposta apócrifa é um daqueles elementos que traduzem, com precisão, o espírito da licitação de publicidade: um processo que exige técnica, ética e estratégia em doses iguais.
Ela não é uma formalidade burocrática. É um instrumento de integridade do julgamento. É o que garante que a avaliação da proposta técnica ocorra de forma justa, baseada no mérito do conteúdo — e não na força da marca ou nas conexões de mercado da agência concorrente.
Criar no anonimato exige uma combinação rara de habilidades. É preciso dominar a linguagem publicitária, entender profundamente o briefing simulado, propor soluções viáveis e criativas — tudo isso sem recorrer a atalhos de reputação. É, ao mesmo tempo, um teste de maturidade institucional e de inteligência comunicacional.
Mas a proposta apócrifa também é uma mensagem. Ela mostra que é possível — e necessário — ter critérios justos, isentos e transparentes no julgamento de algo tão subjetivo quanto a comunicação. Mostra que o Estado pode, sim, contratar criatividade com responsabilidade. E mostra que o mercado publicitário pode — e deve — se adaptar a esse padrão de exigência técnica.
Nos bastidores da licitação, a proposta apócrifa é o coração do processo. E quem aprende a tratá-la com o cuidado que ela exige, dá um passo importante para compreender, respeitar e se destacar nesse universo tão peculiar da publicidade pública.
No próximo artigo da Publique-se, vamos continuar nesse mergulho técnico, tratando do julgamento da proposta técnica: quem julga, como julga, com base em quê — e o que acontece quando tudo isso não é bem conduzido.
Nos vemos lá.