Design Desinteressado

Publicado em

18/03/2024 15h40

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Assisti desenhos de um Outro longe da Natureza em minha última estadia em São Paulo. Isso me inspirou na questão que levanto: existe apoio para considerar um Design desinteressado? 

Quando serão abandonados os comandos conversacionais de mídia que permitem negar a existência do Outro? Uma plataforma de mídia social que prioriza a privacidade e o bem-estar dos atores-usuários em detrimento do lucro ou do crescimento da base de usuários, seria possível? Poderia o desenhista da experiência reconhecer a responsabilidade ética em relação aos utilizadores, buscando criar uma experiência que valorize a dignidade e autonomia de cada indivíduo para além de um base de CRM?

Pode-se desenhar features com recursos como configurações de privacidade robustas, proteção contra o compartilhamento excessivo de dados pessoais e medidas para mitigar o cyberbullying e a desinformação? 

Reclamo princípios filosóficos que atentem ampliar as abordagens centradas nos atores-usuários, ofício do Pesquisador de Experiência. Nesta croniqueta, ressalto que valores de empatia, compaixão e cuidado pelo ator que figura utilizar funcionalidade técnica requerem uma apreensão profundamente ética. Aglutino estas três variáveis dos estádios de interação como “desinteresse”.

Levinas enfatiza a responsabilidade ética como a verdadeira revelação de D’us na Terra. Por vezes, os trabalhadores de UX visam priorizar a responsabilidade moral e jurídica pelo “bem-estar dos usuários” em suas práticas de design. Ignoram seu teor significante sem embargo. Tal, a busca de Espinoza por uma compreensão intelectual da realidade, livre de emoções passivas, pode inspirar uma abordagem objetiva e centrada na abrangência das tão requeridas “necessidades” e “experiências”. Exprimo ambos filósofos sob esta óptica. Atrevo-me a resumir uma porção de Out of Control (2016) de Richard Cohen, o qual tem sido revisitado durante os encontros da Chavurah Estudos Judaicos Contemporâneos: Filosofia, Política e Linguagem da CIP, na qual sou participante.

A convergência entre as filosofias de Levinas e Espinoza sobre o amor a D’us é brigante. As duas defendem um amor desinteressado, sem expectativa de recompensa. Espinoza argumenta que amar a D’us é compreender proposições verdadeiras e a perfeição intelectual da realidade, sem emoções passivas como prazer ou dor, pois D’us, sendo perfeito, não muda e não é afetado por tais emoções. Portanto, esperar prazer em troca do amor a D’us seria um equívoco fundamental, pois implicaria desejar que D’us não fosse D’us. A relação adequada com D’us, segundo Espinoza, é através do amor intelectual, que reconhece a perfeição eterna e imutável de D’us. Levinas, embora distante na teoria, ecoa essa noção de um amor unilateral a D’us.

A contemplação de D’us, segundo Espinoza, é um estado constante de perfeição que não envolve dor ou prazer. Sentimentos ou emoções passivas. Redefine o amor por D’us como uma emoção ativa, ligada ao intelecto e à compreensão de ideias adequadas. Assim, o amor intelectual por D’us é o prazer derivado da atividade mental de conceber a verdade, participando da atividade perfeita que é D’us. Exemplifico:

A beatitude, ou felicidade, é definida como a participação na atividade intelectiva perfeita da mente, e é a própria virtude, não uma recompensa por ela. Portanto, o verdadeiro amor por D’us não espera retorno, pois o próprio amor é a maior recompensa possível. Esperar recompensas de D’us é cair em ideias inadequadas e não estar verdadeiramente em relação com H’ssem.

Assim, Espinoza e Levinas compartilham a ideia de que o amor ao Criador deve ser desinteressado. Há duas razões distintas não obstante. Espinoza vê o amor por D’us como um entendimento intelectual da verdade, onde D’us e Natureza são equivalentes e representam a totalidade das proposições verdadeiras. 

Levinas, por outro lado, critica a abordagem lógico-dedutiva de Espinoza e insiste na separação entre razão e vontade, rejeitando a ideia de que o amor por D’us possa ser reduzido a uma compreensão puramente racional. Para Levinas, essa visão ignora a própria ignorância e as condições subjacentes ao pensamento lógico. 

O que digo é: enquanto Espinoza identifica o amor por D’us com a atividade intelectual pura, Levinas defende uma abordagem mais complexa que reconhece a transcendência e a separação entre o divino e a compreensão humana.

D’us e Natureza são intercambiáveis para Espinoza, baseando-se na equivalência entre intelecto e vontade. Seu entendimento defende que a Natureza é um conjunto de proposições verdadeiras, uma manifestação da inteligência divina. Em contraste, Levinas critica essa identificação racionalista, argumentando que a experiência humana não pode ser reduzida a lógica idealista. 

Defende que a subjetividade humana é um ser separado, com responsabilidade ética que transcende a compreensão intelectual. A vontade humana é livre para assumir essa responsabilidade, mas não pode ignorar o mundo significativo introduzido pelo “Outro”. Portanto, Levinas opõe-se à redução da vontade à razão, valorizando a ética e a moralidade como fundamentos humanísticos.

Levinas argumenta que a sensibilidade não é simplesmente uma razão cega ou uma tolice, mas algo que precede a razão e possui seu próprio significado independente dela. Critica, sem nenhum embargo, a imposição da razão sobre a vontade como uma forma de tirania e totalização, e defende que a verdadeira individualidade não se baseia na arbitrariedade ou na particularidade, mas sim em uma experiência ética que transcende a lógica idealista. 

Sua tese figura expressar que a responsabilidade ética é a condição para a inteligibilidade, e a experiência sensível do indivíduo, com sua vulnerabilidade e capacidade de desfrutar, é fundamental para a constituição do eu e para a chamada à responsabilidade pelo outro. Essa abordagem contrasta com a de Espinoza, que vê a sensibilidade como irreal por não se enquadrar na lógica dedutiva. Levinas oferece uma alternativa significativa, onde a ética é vista como “diferente do ser e além da essência”. Ambiência para um Design Desinteressado.

A verdadeira transcendência do desenho técnico parece, assim, encontrar na relação ética com o Outro, que desperta uma sensibilidade e atenção além da autoabsorção. Levinas critica Espinoza por reduzir a vontade à razão, eliminando a transcendência e a alteridade. Em contraste, este enfatiza a independência da sensibilidade em relação à razão, que só se torna acessível à razão através da intersubjetividade ética. 

Aplicar Levinas a um suposto Design Desinteressado é considerar que a moralidade é a resposta à interação entre seres “autossuficientes”, ocorrendo através de uma relação que não se reduz à representação, mas que reconhece a “irreducibilidade” mútua e a responsabilidade ética.

Kochav Nobre
Auditor de pesquisa na Ernest & Young
Kochav Nobre é auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia.Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.