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Onde foi parar a beleza?

Por Clotilde Perez

12/10/2022 17h18

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Nos inícios, a beleza foi concebida, interpretada e promovida pelos homens. As mulheres não representam a si mesmas, mas sim eram representadas pelos homens. A imagem da mulher e da beleza, desde a Antiguidade, foram construções e reproduções do imaginário masculino. Por isso, falava-se muito mais do belo do que da beleza propriamente dita. Esteve associada ao corpo harmônico, simétrico e proporcional e suas manifestações nas artes, principalmente na pintura e na escultura. Ainda que os gregos associassem a beleza à sabedoria e à justiça, como Platão relacionou o belo, com o bom e o verdadeiro, mas foi nas artes que ela frutificou. Portanto, arte e beleza tradicionalmente estiveram muito próximas, para não dizer, misturadas. Em certa medida a beleza era o princípio fundador da arte, e a estética, o eixo da filosofia que estudava sua natureza e fundamentos, por meio do julgamento da percepção, das sensibilidades e das emoções decorrentes dos fenômenos estéticos.

            Mesmo nos dias atuais, a beleza se relaciona a determinados padrões estéticos que são sempre culturais e que, portanto, acordados em determinado tempo-espaço e em crescimento, ou seja, não estão cristalizados, ainda que princípios de simetria e proporção tendencialmente agradem a nós humanos em todo o planeta. Mas, o que é a beleza? Podemos defini-la como todo o fenômeno natural ou da cultura que atrai, que nos agrada, que chama a nossa atenção nos deixando abertos às sensibilidades. A beleza nos prepara para receber, nos coloca suscetíveis aos nossos sentidos, todos eles, ainda que a visão seja porta de entrada privilegiada. E quem era responsável pela beleza? Certamente, a arte.

            E agora, onde está a beleza? Depois de algumas imersões em espaços artísticos no Brasil e no exterior e de leituras críticas, fica patente que a arte, e aqui me refiro a arte contemporânea, já não tem mais compromisso com a beleza. A arte agora é outra coisa. Das bienais de arte nas grandes cidades, às exposições artísticas e a Documenta de Kassel, mostra até então das mais prestigiosas, o compromisso dos artistas e coletivos é com a denúncia, com o ativismo e com a expressão das tensões e sofrimentos. Dos desgastes ambientais, às questões indígenas, migrantes e refugiados, instabilidades econômicas, religiosas e políticas…. Madeira destruída, ferro torcido, terra seca, rachaduras, ruínas, desgastes, rasgos, arames, armas em profusão, e tantas outras materiais e imaterialidades, como as artes digitais, aportam o tom caótico, instável e sombrio, materialização de um zeitgeist muito sofrido. E aqui não há julgamento, apenas constatação. Mas se a arte contemporânea não se manifesta no/pelo belo, onde está a beleza então?

            Lipovetsky & Serroy nos auxiliam na resposta, com a publicação de suas reflexões sobre o Capitalismo Estético. Sim, a beleza está no consumo, em especial na publicidade, na moda e no design. Corpos atléticos e diversos, roupas e acessórios exuberantes, estilos singulares, objetos, móveis, utensílios de cozinhas e salas que mais parecem obras de arte tamanha a capacidade de nos envolver, decorações de jardins e varandas românticas e bucólicas, mas também nos ambientes digitais das marcas de moda e design que nos convidam à imersão e à experiência sensível. Materiais singulares que estimulam o toque e entorpecem o olhar, cores novas em mesclas inusitadas, misturas sinestésicas onde o objeto é cada vez mais corpo que coisa, está fetichizado, tem temperatura, sons, fragrâncias, sabores e visualidades que surpreendem pela humanização. Objetos atratores do nosso olhar e de todo o nosso corpo. Se a beleza é o que nos atrai, portanto, ela só pode se dar a partir daquilo que suscita nossa atenção e admiração, por que nos proporciona o deleite. E quem nos proporciona essa fruição hoje são a moda e o design e todo o ecossistema publicidade que permite a circulação desses sentidos. A moda que nos identifica e o design que nos ambienta e conforta.

            A beleza há sempre que existir, pois ela é responsável por nos conectarmos com as nossas sensibilidades, suscitar as melhores e mais significativas emoções, enfim, ela faz com que nos sintamos mais humanos, quiçá grandiosos e sublimes. Mesmo que assimétrica, hibridizada, tecnológica, efêmera e a partir de áreas impensáveis há poucas décadas atrás. Diante de tantas crises, sofrimentos e frustrações, precisamos de algum conforto para continuarmos seguindo em frente, e aí só a beleza nos salva. A beleza como o objetivo primordial, o summum bonun da humanidade, o admirável como fim último, por que como nos afirmou Peirce (1995), mesmo a ética deverá ser admirável, por que assim será também estética.

Referências

LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A estetização do mundo. Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Cia das Letras, 2015

PEIRCE, Charles S. Peirce. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1995

 

 

Clotilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil.

cloperez@terra.com.br | @cloperez

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.