#minhacasa antes, durante e depois

Por Redação

30/06/2021 11h15

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A casa e as estruturas do morar, desde a organização das cidades, passando pelo bairro, até os padrões dos cômodos das casas e sua decoração, constituem a dimensão mais estável de nossa vida material. Braudel (2005) refere-se ao domínio da construção das casas como profundamente ligado às tradições, em que as mudanças significativas se processam muito lentamente. Mesmo o gosto burguês pelo novo e pela mudança, raiz da sociedade de consumo, traduz-se na decoração da casa atravessado por estruturas imutáveis.

No contexto do Brasil colonial e pós-colonial, Da Matta (2011) observa que a organização do espaço se confunde com a própria ordem social. A disposição dos cômodos, os espaços da casa designados a cada pessoa e a própria distinção entre a esfera doméstica e a rua carregam sentidos de classe, gênero e papeis sociais. Especificamente quanto à casa, no lugar de uma disposição funcional dos cômodos, o que existe é a disposição gradual entre os cômodos mais próximos à rua, nos quais os visitantes podem entrar, e os cômodos mais íntimos, como os quartos e a cozinha. Esta última, juntamente com o jardim, são os espaços reservados às mulheres (sejam as moradoras ou as empregadas), e são também os recônditos impenetráveis da casa.

Dentre os rituais do morar, interessam-me especialmente os rituais do consumo em circulação nas mídias sociais. Arrumar, fotografar / filmar, editar, escolher hashtags e postar são rituais do consumo midiatizado do morar, que ajudam o consumidor a estabilizar sentidos e tomar posse daquilo que entendemos como moradia. Desde 2016 venho coletando e analisando postagens no Instagram a partir da hashtag #minhacasa, em busca das construções de sentidos no consumo midiatizado do morar e suas lógicas. Quatro anos depois, veio a pandemia e com ela um rearranjo em nossa relação com a casa.

Em 2016, as lógicas culturais do consumo da #minhacasa diziam respeito a três eixos: a figura da #donadecasa, que busca afirmação como autoridade no ambiente doméstico; o tom positivo associado a estar em casa; e uma marcante lógica de gênero, em que imagens dentro da casa são majoritariamente postadas por perfis identificados como sendo de mulheres, e imagens do lado de fora (piscina ou mesmo a rua) exclusivamente postadas por perfis masculinos.

Em 2020, coletei postagens durante o mês de maio, pouco depois do início da pandemia e no auge do isolamento social. As lógicas culturais já observadas em 2016, ao invés de se transformarem naquele tão comentado “novo normal”, foram intensificadas: a #donadecasa ganha ainda mais importância na circulação dos rituais de arrumação; o tom positivo é impulsionado por uma onda de “motivação” a favor do isolamento social, uma celebração do estar em casa pelo controle da pandemia; e as lógicas de gênero mais fortes do que nunca. Agora do lado de dentro, o homem consome a #minhacasa como academia de ginástica ou local de descanso, enquanto a mulher equilibra os cuidados da casa e dos filhos e o trabalho remoto.

No lugar de uma grande mudança na nossa relação com a casa, ao contrário do que muitos alardeiam, o que vemos é a intensificação de lógicas culturais profundas no consumo do morar. Em busca de sinais do que vem pela frente, passei a observar novamente as postagens no primeiro semestre de 2021. Em resumo, o consumo da #minhacasa agora se parece mais com o de cinco anos atrás em suas lógicas profundas. Com um detalhe que me chamou a atenção na questão de gênero: começam a surgir postagens de perfis de mulheres descansando em casa. Cumpridos os rituais de arrumação, a casa pode ser o lugar do lúdico e do hedonismo também para as mulheres. Sinais de novos tempos?

 

Lívia Souza 

Publicitária e doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo. É professora em cursos de graduação e pós-graduação no Centro Universitário Belas Artes. Pesquisadora associada ao GESC3 – Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo e membro da ABP2 – Associação Brasileira de Pesquisadores em Publicidade, desenvolve pesquisas nos campos da mídia e do consumo.

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.